sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

MELANCOLIA PÓS-NATAL


A melancolia pós-Natal deu-lhe para se assombrar em infernos antigos que, pelo menos, enquanto por cá andarem os que viveram o pesadelo, não serão esquecidos.

Esses dias de raiva!

Guerra Colonial:

- 800 mil jovens foram mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique

- mais de 10 mil mortos

- 40 mil estropiados e deficientes

- Em Julho de 1989, a Associação dos Deficientes das Forças Armadas estimava que o stress de guerra afectava cerca de 140 mil ex-combatentes com várias perturbações traumáticas. No entanto, a estatística é falível porque se admite que não são conhecidos todos os casos. Entre os que recebiam assistência psiquiátrica encontrava-se um número considerável de drogados, alcoólicos, outros com graves problemas de adaptação social.

Sabemos destes números.

Serão mais? Serão menos?

Escreve João Paulo Guerra no seu livro «Memórias da Guerra Colonial»: não há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor.

Há feridas que custam a cicatrizar, mas o silêncio não é o melhor remédio.

O reino da mediocridade salazarista, o frenesim de manter um Portugal uno e indivisível, de Minho a Timor, impuseram uma guerra sem sentido, estúpida e inútil.

O desprezo por todo um povo.

Adeus até ao meu regresso.

Lembram-se?

Se se lembram, não nos obriguem a esquecer.

Porque ninguém perguntou àqueles jovens se queriam ou não participar naquela guerra.

Uma verdade: não sabemos tudo sobre esta guerra. Apenas julgamos saber…

No Natal de 1971 o «Movimento Nacional Feminino» editou um disco que foi distribuído pelos soldados que combatiam em África onde, possivelmente, não existiam gira-discos e, em quartéis de morros e picada nem electricidade havia.

Na contracapa do disco fala-se das muitas vontades que permitiram que ele fosse feito.

O disco integra mensagens patrióticas de um leque de personagens onde, entre outros, surgem Eusébio, Hermínia Silva, Parodiantes de Lisboa, Inspector Varatojo, Joaquim Agostinho, Amália Rodrigues, Maria de Lurdes Modesto, Florbela Queiroz.

Vai o disco a meio e ouve-se:

Sou a Cilinha (1).

Cabem-me as missões mais gratas neste LP de carinho. Antes de mais a de representar as vossas famílias. É com toda a alegria que o faço. Em nome delas: «Olá rapazes! Santo Natal.»


António Lobo Antunes em «Os Cus de Judas»:

As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de Padre Nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da Pide superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pêlos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas.

O disco não termina sem que se volte a ouvir a voz da Cilinha:

A fechar este disco a presença dum soldado que é vosso chefe e irmão: o General Sá Viana Rebelo (2) :

Destinam-se estas palavras a figurar no disco do simpático Movimento Nacional Feminino para lembrança individual no Natal de 1971 dos militares do Exército, Marinha e Força Aérea. Tais palavras serão uma mensagem de esperança e de paz (…) vejamos um dia recompensados os nossos esforços para que a paz volte à terra portuguesa. (…) Mais um ano em que há afastamento de militares das suas famílias (…) Quantos Natais muitos dos nossos militares passaram já afastados das famílias? (…) Mas é sacrifício de que os nossos filhos e netos irão mais tarde beneficiar. Nada daquilo que se faz em África se irá perder. Tudo durará. Haja o ânimo de defender o que é nosso e Portugal continuará na terra africana a celebrar na nossa África os Natais de Cristo como agora. E mais tarde de regresso aos lares ao ouvirem este disco estou certo de que muitos, todos, dirão: custou-me bastante mas valeu a pena!

Foi doloroso reouvir este disco.

Incómodo, ridículo, trágico, desprezível.

Aplicar-se às coisas sérias, mesmo que seja Natal, é tarefa própria da velhice.

Pergunte-se, hoje, o que é que verdadeiramente se defendia naquela guerra?

Até que, por um Abril, foi tudo pelos ares!

Colaboração de Gin-Tonic
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(1) Trata-se de Cecília Supico Pinto, mais conhecida por Cilinha, rosto do «Movimento Nacional Feminino», «uma Salazar de saias», como alguém lhe chamou.

(2) Então Ministro da Defesa Nacional.

Nota do escrevente:

A capa deste histórico disco já faz parte da memória deste Kioske.

Por uma tarde de sábado, na Feira da Ladra, acidentalmente, encontrou o disco, no meio de quinquilharias várias, jornais e postais, «Flamas», «Plateias», «Crónicas Femininas». Custou-lhe dez escudos.

Baseado neste disco, Margarida Cardoso realizou, em 2000, um documentário com o mesmo nome, disponível em DVD.

6 comentários:

josé disse...

A alternativa à "guerra colonial" ( designação comunista apenas) era esta:

entrega dos territórios ultramarinos aos "movimentos de libertação". Resultado? Viu-se em 1975.

Quantos mortos? Quantas vezes dez mil?

Só em Angola:

"mais de 500 mil mortes e mais de um milhão de pessoas que foram obrigadas a se deslocar dentro do território do país." (É informação da Wiki).


Só em Moçambique:

" Durante o conflito, cerca de um milhão de pessoas morreram em combates e por conta de crises de fome, cinco milhões de civis foram deslocados3 4 e muitos sofreram amputados por minas terrestres, um legado da guerra que continua a assolar o país
Quem ganhou? O partido comunista."

O povo angolano ou o moçambicano ganharam alguma coisa? Talvez. Uma "democracia" a fingir, um regime corrupto e cleptocrata.

É disto que nos devemos orgulhar?

Fernando Manuel de Almeida Pereira disse...

http://www.ointerior.pt/noticia.asp?idEdicao=788&id=45846&idSeccao=11007&Action=noticia

josé disse...

A História não pode nem deve contar-se apenas de uma das trincheiras.

Quando muito quem a conta deve declarar de que lado estava.

Eu estava do lado dos que lutavam por aquilo que considerávamos ser nosso.

É simples.

Anónimo disse...

Este blogue está a ficar mal frequentado.

filhote disse...

É sempre um prazer ler Gin-Tonic, e imaginar que está aqui ao meu lado... ele e a sua instigante narrativa...

Já tive este disco... não me lembro onde foi parar ou o que fiz com ele...

Gin-Tonic, feliz 2015 para ti e para a amiga Aida. Abraço, beijinho, e saudades!!!

gps disse...

vi o documentário há 3-4 anos na RTP. Muitos dos soldados só ouviram as mensagens dos familiares ou namoradas aquando da realização do documentário